domingo, 7 de março de 2010

Conto - Viver é fácil com os olhos fechados.

Sentada sobre um caixote de madeira, Hanna retira - com ambas mãos tremulas - um papel amassado de dentro da bolsa.
Messes antes, ela resolvera visitar o antigo escritório dele, ou o que sobrara do mesmo.
A poeira acumulada e as teias de aranha no teto denunciavam o abandono do lugar, sem nenhuma ventilação por causa das janelas presas por barras de madeira, o ar colérico e nostálgico invadiu seus pulmões. Em cada pedacinho daquele lugar havia um pedacinho do que um dia fora eles. E hoje, ironicamente ou não, o escritório, que por incontáveis vezes servira de palco para o teatro mágico do romance, também estava completamente largado e esquecido.
Antes que a as memórias a sufocasse por inteira, Hanna se abaixou e pegou um dos muitos papeis que estavam espalhados pelos cantos. E foi embora.
Messes depois ela teve coragem de lê-lo:

"Dor. Todos esses messes tem pessado quilos nas minhas costas. Todas essas dores, essas lágrimas. Saudade anda me corroendo por dentro, queimando em minhas mãos.
O medo me cala como se eu fosse um prisioneiro. Há anos tenho procurado achar num mar de palavras uma razão para justificar a minha incompetência no quesito coragem. Nada. Eu ainda me lembro de quando nos entendíamos como se fossemos mão esquerda e mão direita.
Ainda que por esses labirintos de palavras não ditas, agora só nos resta crescer, meio tortos e com cicatrizes. Mas crescer.
Ela. A única que me atira ao vento e faz com que tudo que eu mais queira é não parar de cair cada vez mais, cada vez mais fundo, nela, pra ela.
Silencio. Que tem se tornado o meu mais traidor companheiro. Que na primeira oportunidade amarra-me com força, até que eu fique inteiramente nauseado, transtornado, nadando perdido nessa piscina profunda que não se acaba mais. É silencio que não se acaba mais. Afogado no medo.

Então, num simples ato como de quem abre um presente na manhã de natal, eu desfiz o laço.

E separei nossas estradas.
Mas a verdade é que eu continuo parado no meio do caminho, sem forças pra seguir em frente, sem coragem para consertar o que ficou pra trás.
E o Impulso às vezes chega, esmurra a porta com uma revolta surpreendente, e até pula todos os muros que eu construi em torno dela.
Mas no final das contas, vale a pena tocá-la apenas por mim?
Mísero qualquer um, sem doçura nem delicadeza nenhuma, eu, bruto, esquisito, sem nenhum atrativo especial? Eu? Mísero qualquer um que já se acostumou a sofrer?

Linda como uma estrela.
Distante como uma estrela.

Intocável como uma."

Ainda arrependida por um dia ter tirado aquele papel do chão do escritório, Hanna – mesmo com lágrimas queimando pelos olhos - segue seu caminho para fora do convés. A carta - esquecida sobe o caixote e deixada para as traças - ainda pode presenciar a melodia que a mulher saiu sussurrado:

Living is easy with eyes closed
(Viver é fácil com os olhos fechados)
Misunderstanding all you see
(Sem entender o tudo que você vê)
It's getting hard to be someone
(Está ficando difícil ser alguém)
But it all works out
(Mas tudo parece funcionar bem)
It doesn't matter much to me
(E isso não é muito importante pra mim)
Strawberry Fielsds Forever - The Beatles.

Anny.

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